O sino ressoa na sala de dokusan. Do lado de fora, você faz uma reverência, pega o pequeno martelo de cabeça acolchoada e toca duas vezes o sino à sua frente. Após deixar o martelo sobre a mesa, faz uma segunda reverência, se levanta. Próximo à sala de dokusan, você aguarda alguém sair, e assim que a pessoa passa, você entra no aposento, faz três reverências para a Professora, se aproxima do assento e se senta. Uma reverência mais e a entrevista começa.
Não é a sua primeira vez em um dokusan, em uma entrevista individual de prática. Você começa a contar para a Professora como está seu zazen, fala de suas dificuldades com algum aspecto do ensinamento, expõe suas dúvidas. Em algum momento a Professora, percebendo que você está com uma dificuldade específica, lhe diz o seguinte: “Você conhece o som de duas mãos batendo palmas, não conhece? Sim. Qual o som de uma só mão? Não me diga, me mostre.” E, logo depois de confirmar que este é o Koan com qual você vai trabalhar agora, ela toca o sino, encerrando a entrevista.
Você sai da sala sem saber muito bem o que é que lhe foi proposto. Você conhece o som de duas mãos batendo palma. Mas o som de uma só mão?! Algumas imagens surgem na sua cabeça, algumas idéias. E seu eu bater os dedos na palma da mão, vale? E se eu apenas sacodir minha mão no ar, vale? E se for o som sem som do Zen? Que som seria esse? Como se essa confusão não fosse o bastante, ainda há o tipo de resposta que a professora pediu: “Não me diga, me mostre.” Agora complicou de vez. Como é que eu mostro um som? E não qualquer som! Mas o som de uma só mão?!
O primeiro contato com um Koan pode ser exatamente assim, ou não. Varia de pessoa para pessoa. Mas algum estranhamento sempre há. Você pode ter lido sobre Koans, e até sobre este Koan. Você pode ter ouvido comentários de outros praticantes. Você até pode ter uma excelente idéia para “resolver” o Koan mesmo antes de sua professora apresentá-lo. Mas você não pode evitar a excitação da sua mente racional, lógica, ao ser confrontada com uma pergunta que não tem solução racional, lógica. O som de uma só mão?!
Na Introdução do livro 108 Contos e Parábolas Orientais, nossa Professora, Coen Roshi Sama, explica que os Koans têm sido usados ao longo do tempo para “facilitar o rompimento entre as idéias da realidade e a própria realidade. É preciso vivenciar a vida, e não apenas falar sobre a realidade, filosofar e, muitas vezes, se perder.” Em outro livro, Sitting With Koans, Thomas Yuho Kirchner escreve: “À primeira vista Koans parecem ser a charada perfeita, nos desafiando a transcender a lógica comum e oferecendo a promessa do insight espiritual.” Se juntarmos esses dois pontos de vista, podemos ver os Koans como uma ferramenta de prática, que, através de um desafio à nossa mente lógica nos aproxima da vida como vivência e não como idéia. Talvez por isso a pergunta do final do dokusan seja esta: “Não me conte, me mostre”.
A primeira escola a sistematizar o uso de Koans como base de prática foi a Rinzai, conhecida na China como Linji, devido a seu fundador Linji Yixuan (em japonês Rinzai Gigen). Koans já eram usados na China desde pelo menos os sécs. VIII ou XIX E.C., mas os acontecimentos nos quais eles se baseiam são muito mais antigos, com alguns koans citando histórias do tempo de Xaquiamuni Buda. No Japão, o uso sistemático de Koans também está ligado à escola Rinzai, que foi trazida da China no séc. XII E.C. pelo Mestre Myōan Eisai.
A partir do uso regular de Koans na China, praticantes começaram a agrupá-los em compilações e a ordená-los de acordo com o avanço na prática. Na escola Rinzai o praticante deve passar por uma sequência de Koans específicos para avançar em seus estudos e chegar a se formar professor, professora. São muitas as compilações de Koans famosas tanto na China quanto no Japão. A mais antiga é a Fun’yoroku, de Mestre Fen-yang Shan-chao (em japonês Fun’yo Zensho). A compilação de Mestre Fen-Yang tem 300 Koans entre os clássicos e os muito antigos, além de 100 koans criados por ele. Hoje há cerca de 1.700 Koans em uso nas diversas tradições Zen e agrupados em muitas compilações. Além disso, ao longo do tempo Mestres e Mestras Zen continuaram e até hoje continuam a criar novos Koans.
Nossa escola, a Soto Shu, não utiliza nem incentiva o uso regular, sistemático, de Koans. A base da nossa prática é Shikantaza, apenas sentar. Ainda assim, o próprio Mestre Dogen colecionou e trouxe da China algumas compilações de Koans, além de ter escrito muito do Shobogenzo referindo-se a eles, comentando e usando as histórias para orientar seus alunos e alunas. Muitos professores e professoras da nossa tradição treinam também com Mestres e Mestras Rinzai e incorporam Koans nos programas de treinamento. Nossa professora, Coen Roshi Sama, utiliza Koans quando percebe que um de nós está preso, presa e não consegue avançar no Caminho. Nas palavras dela: “O uso de Koans ajuda a libertar o ser de suas próprias amarras.”
A palavra Koan é associada com os Koans que vamos estudar este semestre, mas sua origem é mais antiga. Segundo Shohaku Okumura Roshi, no livro Realizing Genjokoan, Koan pode significar um documento público colocado sobre a mesa de um escritório governamental. Na China antiga significava qualquer lei promulgada pelo Imperador, inquestionável e imutável, que se aplicava a todos os seus súditos. Ainda segundo Okumura Roshi, no Zen as pessoas consideravam os Koans como expressão de algo imutável, ou seja, expressão da verdade última, expressão da realidade assim como ela é.
A palavra Koan é formada por dois caracteres. O primeiro caractere, Ko (公), significa “público” ou “tonar público”. Neste sentido, diz Okumura Roshi, “significa equalizar a desigualdade.” Os oficiais do governo na China antiga, quando arbitravam disputas entre as pessoas, tinham como obrigação considerar os envolvidos como iguais. E, claro, tinham que buscar uma solução justa e sem preconceitos para a situação. Tornar algo público, nesse caso significa tornar algo justo, equilibrado, harmônico. Okumura Roshi conclui: “Por isso mesmo, Ko neste sentido quer dizer equalizar situações injustas e desiguais entre seres que se manifestam neste mundo de desordem e discriminação”.
O segundo caracter de Koan é An, e aqui a questão pode se tornar mais complexa. Segundo Okumura Roshi, existem duas maneiras diferentes de escrever Koan, usando caracteres chineses. Em ambas, o caractere para Ko é o mesmo, mas há dois caracteres diferentes para o som An.
O caractere mais usado e relacionado com os Koans da prática Zen é (案) – discutiremos o outro caractere e seu significado em outro momento. Uma parte deste caractere significa literalmente madeira ou mesa e é ele que relaciona a palavra Koan (公案) com um documento colocado sobre uma mesa de escritório. Assim temos o significado tradicional para Koan: um documento colocado sobre uma mesa que tem como objetivo equalizar as desigualdades. Através do uso de Koans, abandonamos visões distorcidas da realidade e aprendemos a agir no mundo através da equidade entre tudo o que existe. Há uma diferença grave entre saber disto e se manifestar desta forma no mundo. A prática com Koans nos ajuda neste Caminho.
Você pode ler e reler este texto o quanto quiser. Mas será que ao ler e reler tudo isso você vai chegar mais perto da resposta para o som de uma só mão? Como foi dito, há uma diferença entre saber a resposta de um Koan, e manifestar essa resposta através da sua vida. Da mesma maneira, podemos entender sobre visões distorcidas do mundo e ainda assim continuar olhando o mundo de forma distorcida. Coen Roshi Sama, na Introdução do 108 Contos e Parábolas Orientais diz: “Há pessoas que se consideram religiosas, mas que destratam pessoas, plantas e animais. Outras se dedicam à meditação e abandonam suas atividades de manutenção e sustentação da vida.”
Uma das ferramentas que a Mestra pode utilizar para nos ajudar a transcender o saber são Koans. Através da prática com eles, podemos “desemperrar”, “desatolar”, soltar amarras e prosseguir, atravessando o emaranhado de espinhos e chegando à outra margem. Como diz Roshi Sama, podemos passar “pelas barreiras do próprio eu.” Mas como se pratica com Koans? Como é que se resolve um Koan? Onde? Thomas Yuho Kirchner dá uma sugestão: “Questões deste tipo [koans] geralmente se resolvem através de uma prática rigorosa de zazen e com o aprofundamento dos insights. (…) E mesmo assim, com a continuidade da prática, outros enigmas, às vezes muito mais complexos, emergem.”
Koans resolvem-se a si mesmos através do zazen, através de entrevistas com a professora, através do aprofundamento da prática. Mas é só isso? Sentamos, fazemos dokusan, aprofundamos e os koans se resolvem? Neste momento é preciso se perguntar. Quando você se levanta do zazen, o que você faz? E o que você faz com esse koan resolvido? Você se levanta do zazen, sai da sala de dokusan e segue maltratando pessoas, plantas, animais? Onde é que o Koan e a sua resolução se manifestam? Onde você está quando o Koan se resolve?
John Daido Loori Roshi costumava dizer a seus alunos: “Sentar-se em samadi, experimentar a não diferenciação entre você e tudo o que existe é ótimo. Mas tente atravessar a rua sem saber onde está o limite entre você, a faixa de pedestres, o farol, os carros vindo.” O que ele quer dizer com isto? É através deste eu pequeno, mas à partir da experiência do ilimitado, que a vida é vivida em sua plenitude. O mesmo se aplica à nossa prática de Koans. Os Koans se resolvem. Ainda assim, é você que vai viver de acordo com o que aprendeu nesta experiência.
Além disso, precisamos sempre cuidar para que esta prática não se torne um concurso de solução de charadas, desligado da nossa vida, das nossas ações, do dia-a-dia. Koans se resolvem para além do zafu, para além da sala de dokusan, na sua vida, no dia a dia.
Coen Roshi Sama fecha sua Introdução do 108 Contos e Parábolas Orientais, dizendo: “… que da apreciação, reflexão, estudo e meditação sobre esses contos [koans], você seja capaz de acessar a mente desperta e torná-la cada vez mais sua, mais íntima, mais clara. Que os méritos se estendam a todos os seres e que possamos nos tornar o Caminho Iluminado.” Quer saber qual é o som de uma só mão? Adentre o Caminho, abandone corpo-mente em Zazen, experimente a não diferenciação, mas levante-se do zafu, atravesse a rua, na faixa, cuidando de si e de todos os seres.